OS “LAMBE-CUS”
Elísio Estanques - professor |
Por Elísio Estanque
Eles são a contraparte da vontade de
bajulação de personagens “importantes” cujos enormes umbigos – e as lambidelas
diárias – os fazem sentir-se muito mais importantes do que realmente são.
No Portugal
antigo, nos tempos da sociedade rural e do paroquialismo, era a “graxa” que
dava “lustro” aos mais poderosos. Mais tarde surgiram os “lambe-botas”; e
atualmente, é o tempo dos “lambe-cus”. A espécie não é obviamente um exclusivo
do “habitat” lusitano. Mas não tenho dúvidas de que por cá ela germinou,
floresceu e hoje multiplica-se a olhos vistos. Isto porque aqui encontra as
condições ideais para a sua multiplicação.
Os atuais lambe-cus são descendentes
dos “lambe-botas”. Não deixa, no entanto, de ser curioso, e aparentemente
paradoxal, que os lambe-botas (os pais dos lambe-cus) tenham sido tão
combatidos, quase exterminados, com a restauração da democracia, e depois
ressurgiram tão vigorosamente. À medida que o regime democrático se foi acomodando
às suas rotinas burocráticas e, posteriormente, começou a ser corroído por
dentro, eles brotaram das entranhas e estão agora por todo o lado.
Digamos que
a corrosão da democracia está em correspondência direta com o aumento dos
lambe-cus. Porque será que isto ocorre e porque será que o país se tornou um
“viveiro” tão fértil para esta espécie?
Na era da escravatura e ao longo do feudalismo a
subserviência era uma obrigação. A resignação era intencionalmente fabricada
para uso caseiro de soberanos e poderosos. O escravo servia com zelo e
dedicação no interior de palácios, fazendas e casas senhoriais, em ambiente
mais ou menos despóticos.
Nos tempos do salazarismo e do Estado-Novo os
“lambe-botas” foram cultivados e cresceram dentro das hostes do regime, nas
corporações, no interior das forças repressivas e junto dos grupos dominantes.
O aparelho de Estado e a doutrina oficial impunham a obediência geral, pelo que
o “lambebotismo” era intrínseco aos bastidores do poder.
Por outro lado, com a chegada da
democracia deu-se uma viragem. Houve uma espécie de “PREC” anti-lambebotas.
Acresce que nessa fase os cus mais gordos e bem tratados saíram de cena, isto
é, ou exilaram-se ou entraram numa espécie de clandestinidade. E isto também
porque com a multiplicação do cidadão ativo e ciente dos seus direitos, estas
duas subespécies tiveram grande dificuldade em prosperar. O cidadão pleno e
emancipado, com a espinha dorsal no sítio, afirmava-se por si próprio e,
durante algum tempo, os próprios lideres e dirigentes prescindiram dos
lambe-cus e das suas manobras. Esse cenário foi, no entanto, passageiro.
Rapidamente se começou a notar a grande resiliência desta camada de gente, que
aliás, rapidamente renasceu das cinzas.
Com a entrada na era da tecnocracia (anos oitenta, por
aí…), o novo-riquismo apoderou-se das estruturas dirigentes, donde resultou o
vazio da política e, em vez dela, cresceu a burocratização e os cargos de decisão
reverteram-se nos principais locus de incubação dos novos lambe-cus.
Do ponto
de vista genético o lambe-cus é despojado de coluna vertebral, ao contrário dos
seus antecedentes (os lambe-botas) que ainda tinham algum resquício de coluna,
embora torcida e vergada aos seus amos. Na sua versão mais pura, o lambe-cus
possui qualidades que lhe permitem detetar à distância onde se encontra o cú
mais proeminente e atrativo para ser lambido. Alguns desenvolveram até uma
língua bífida, especialmente elástica e hipertrofiada, o que lhes permite
lamber vários cús ao mesmo tempo sem que os respetivos donos se apercebam da
concorrência. Já quanto ao “caráter” é um atributo que, pelo contrário, se
encontra atrofiado ou não existe sequer. O “ego” do verdadeiro lambe-cus só se
faz notar quando algum cu poderoso dá sinais de querer ser lambido. É
dotado de instintos caninos. Ele projeta-se totalmente na satisfação plena do
seu dono.
É verdade que alguns lambe-cus entram por vezes em
desgraça, sobretudo quando, dominados por uma pulsão exibicionista denunciam em
público os cus que andaram a lamber. Mas o seu habitat natural são as zonas
subterrâneas do poder: as grandes corporações e grupos empresariais, os
bastidores da política, dos municípios, das universidades, etc.
Em todo o lado
onde a cultura burocrática cresceu, os séquitos de lambe-cus proliferam e fazem
fila. Muitos tiram benefício material e pessoal da sua atividade, podendo até
enriquecer, sobretudo depois de terem ajudado os seus patronos a um
enriquecimento milhões de vezes superior ao seu. Mas a sua verdadeira
recompensa está no próprio ato de lamber. Sem essa prática, constante e
repetida, a sua existência não tem qualquer sentido. Eles são a contraparte da
vontade de bajulação de personagens “importantes” cujos enormes umbigos – e as
lambidelas diárias – os fazem sentir-se muito mais importantes do que realmente
são.
Professor da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra
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