Entrevista. A Universidade Independente de Angola
retirou o filósofo e professor Domingos da Cruz do seu quadro de pessoal, sem
no entanto, esclarecer objectivamente as motivações, revelou o visado em Portugal,
onde se encontra para autografar a sua mais recente obra literária.
Fonte: Disputas Políticas*
Entre os 17 activistas
condenados em Angola por “associação de malfeitores e actos preparatórios de
rebelião”, Domingos da Cruz foi quem teve a pena mais pesada: oito anos e seis
meses. O académico está em Portugal para lançar o livro Angola Amordaçada. Siga
a baixo a suculenta entrevista.
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Domingos da Cruz |
Como era o teu dia-a-dia na prisão?
Comecei por estar três
meses em isolamento de alta segurança. Numa cela de um por dois metros, sem
janela, e com três portas que me separavam do mundo. Um colchão a cobrir o chão
de betão. Era tudo o que tinha. Nesses primeiros meses tive visitas mas só para
receber comida. Não falava com a minha esposa, a minha mãe, ou outro familiar. Foi
logo em Junho de 2015, quando fomos os 15 presos. Todos pelas mesmas razões.
Mas em circunstâncias diferentes.
Há rumores de que estavas em fuga no momento da
tua detenção…
… Eu ia para a Namíbia
para fazer uma consulta. Viajava sozinho, de carro, e fui abordado pelos
guardas quando chegou o momento de transpor a fronteira. Mostrei o passaporte,
e quando colocaram o número e o nome no sistema, o agente virou o computador
para mim: “O senhor não pode sair."
Está a dizer que estava sob rasteio dos Serviços
de Inteligência e Segurança?
Havia uma rede
devidamente conectada. Era necessário deter o altamente criminoso pelo simples
facto de ter comentado umas páginas do Gene Sharp, autor de Da Ditadura à
Democracia, livro que os activistas debatiam e a partir do qual escrevi o livro
Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar uma Nova Ditadura. A maior parte
das pessoas que diz que é preciso uma Angola diferente.
Boa parte dos jovens arrolados neste processo que
gerou o julgamento mais mediatizado dos últimos tempos em Angola, teme submeter-se
à assistência médica no país. Vive o mesmo drama?
Sim, porque os médicos
são do comité de especialidade do partido, estão sob tutela do partido. Em
qualquer altura podem receber uma ordem para fazer mal. Quando podemos, para
preservar a nossa vida, temos consultas fora de Angola. Ir a essa consulta era
um dos meus objectivos. O outro era fazer a impressão do livro Ferramentas para
Destruir o Ditador e Evitar uma Nova Ditadura, porque em Angola a impressão não
foi permitida. As gráficas também estão todas sob tutela do regime.
Recuemos um bocadinho, quando foi que ocorreu a
tua detenção?
A minha detenção foi
no domingo, no dia a seguir à detenção da maior parte dos activistas, no centro
de Luanda. Não gostaria de narrar o que se seguiu. Apenas o farei quando não
sentir este desconforto psicológico que ainda sinto. Seria uma besta se não
sentisse. Em que momentos? Como este agora mesmo, em que se ouviu uma buzina lá
fora. Nós éramos permanentemente movimentados por carros prisionais com esse
barulho de sirene. E isso assusta-me.
Tem de procurar um médico…
Tento fazer
psicoterapia para que possa recuperar deste trauma. Há momentos em que paro e
sou tomado por aqueles momentos de tristeza profunda sobre o que se terá
passado. Por que é que a opção pelo bem nos sai tão cara? Se essa detenção
resultou numa melhor percepção do que é o regime angolano acho que valeu a pena
Mas tenho a certeza de
que a minha opção é uma opção certa. Mesmo com as privações que permanecem, não
terei qualquer arrependimento. Recupero uma ideia um bocado cristã e que foi
muito repetida por Leon Tolstoi de que há um sofrimento que vale a pena. Se
essa detenção resultou numa melhor percepção do que é o regime angolano acho
que valeu a pena.
Neste caso a percepção pode ser relativa, dado
facto de terem sido amnistiados?
Saímos da prisão com
termo de identidade e residência e depois fomos amnistiados. Voltei para o
convívio familiar mas não tenho um emprego formal. Não me é possibilitada
qualquer progressão na escala social. A minha esposa e eu estamos sob
vigilância permanente dos serviços secretos.
Dentro da máquina autoritária
existem aquelas pessoas que mesmo estando lá, são boas, acreditam que é
possível mudar a máquina por dentro. São essas pessoas que nos dizem. Sabemos
quem são os agentes que nos vigiam todos os dias. Os actos persecutórios são
permanentes, sistemáticos e incessantes. Existem pais e mães de activistas que
também tiveram sinais de uma vigia permanente. Neste momento não sei, mas
durante a minha prisão, a minha mãe estava a ser vigiada. Continuo professor
mas não exerço. Dava aulas na Universidade Independente de Angola. Fui
informado de que não posso regressar. Mas estou tranquilo. Acho que o nosso
capital simbólico é muito mais importante.
Não posso falar mais
de dificuldades, porque o pouco tempo de vida que tive no mundo e em Angola já
me permitiram ver o suficiente de actos persecutórios por parte das
autoridades. Eu não sei se a minha vida poderá dificultar-se mais do que já
está. Acho que o próximo passo será o descanso eterno.
Temi pela minha vida
Alguma vez lhe ocorreu que seria assassinado,
enquanto esteve preso?
Em vários momentos
senti que podia morrer na prisão. Pensei: “Em qualquer altura, podem tirar-me a
vida.” Quando se lida com um regime autoritário, devemos estar preparados para
que a qualquer altura nos seja retirada a vida de várias maneiras possíveis.
Se é possível matar,
uma pena de oito anos é um favor que foi feito. O dirigente da oposição
Mfulupinga Lando Victor foi morto [em 2004]. O jornalista Ricardo de Melo foi
morto [em 1995]. O jornalista Alberto Chakussanga foi morto [em 2010], como
conto no livro agora editado em Portugal: «Angola Amordaçada (Guerra & Paz)».
O título não tem a ver com o Portugal Amordaçado. Nem tinha conhecimento da
existência desse livro.
Porque decidiu lançar o teu livro em Portugal,
ao invés de fazê-lo primeiro em Angola?
Não é provável que o
meu livro seja distribuído em Angola. Seria ingénuo afirmar isso. Mas vamos
esperar que assim aconteça. Se é um livro que tenta interpretar Angola, do
ponto de vista da liberdade das pessoas, é bom que o país que serviu de análise
e o seu povo tome contacto com ele. Mas falando ainda da minha prisão, em
vários momentos, senti que estava a desfalecer. Pensava: “Se passar aqui mais
uma semana, não vou aguentar. Vou enlouquecer.” Depois passava uma semana, e
mais uma e outra. E eu não morria, nem enlouquecia. Não me canso de pensar na
frase de Nietzsche: "Aquilo que não me mata fortalece-me." É isso que
sinto.
Como reagia aos pressentimentos que citou?
Tive vários momentos
de lágrimas na cela. Chorei quando os médicos se pronunciaram sobre o estado de
saúde de Luaty Beirão, em greve de fome, quando eles disseram: “Em qualquer
momento pode haver um apagão.” Nesse dia, chorei, como também chorei ao pensar
no estado de saúde da minha mãe. Ela tem hipertensão e o seu estado agravou-se
com a minha prisão. Começamos a ceder à conclusão de que somos culpados perante
os nossos parentes. A minha mãe dizia que não era bom fazer essa opção. Ela
sempre teve muito medo e acreditava piamente que alguma coisa nos podia
acontecer. Teve vários parentes que foram vítimas do 27 de Maio de 1977.
E chorei também ao ler
uma colectânea de poetas palestinianos. Era possível ver ali Angola. E um dos
poemas fez-me chorar. Era sobre um preso.
Durante as sessões do vosso julgamento, alguns
diziam que vocês teriam a percepção clara das consequências dos vossos actos,
assim que ouvissem a sentença. Pode descrever a sensação daquele momento?
Para mim foi um choque
ouvir a sentença: oito anos e seis meses de prisão efectiva. Foi em Março. E
pensei: “A minha análise sobre José Eduardo dos Santos está certa. Ele é capaz
de tudo.”
Acho que não há pessoa
nem povo nenhum com capacidade de sofrer eternamente. Chegará um momento em que
as pessoas hão-de posicionar-se. Do ponto de vista deles (Regime), uma pena de
oito anos foi um favor que fizeram. Muitos ideólogos do regime fizeram questão
de escrever artigos e fazer pronunciamentos na rádio, na televisão, dizendo:
“Vocês tiveram sorte. Teriam sido mortos, se fosse em Maio de 77. Nem sequer
estariam aqui a serem interrogados, não haveria tempo para a constituição de
processos."
E isso não ficou só
por esses intelectuais orgânicos, estendeu-se inclusive para o procurador. Um
dos procuradores que conduziram o processo Cachaca, durante os interrogatórios
era claro: “Na minha época, vocês seriam fuzilados.” Ele estava, no fundo, a
dizer que essa era a vontade do regime, e que só não o faziam porque vivemos na
época da Internet e que estando tudo tão exposto não poderiam fazer o que
efectivamente gostariam que fosse feito contra nós.
Ler para sobreviver
Como ocupava o seu tempo na cadeia?
Na prisão, eu sempre
achei que estar isolado era o melhor para mim. Sentia que a única maneira de
aguentar era ler. Na companhia dos outros não era possível ler. Li e reli
vários livros neste ano na prisão.
Na passagem pela
cadeia de Calomboloca, estivemos em celas comuns, misturados com condenados de
crimes graves, como homicídios. E corremos riscos. Mas também tivemos quem,
entre esses condenados, nos protegia e se preocupava connosco, dizendo por
exemplo: “Têm que comer, senão não vão atingir os vossos objectivos.” E também
guardas que nos apoiavam e nos deixavam ficar mais horas no pátio do que o
estabelecido, quando o director da prisão não estava. São as tais pessoas que
dentro do sistema não se confundem com o sistema.
Qual é o vosso objectivo, afinal? Será que
poderá ser alcançado?
Se o nosso objectivo
vai ser alcançado? Acho que ninguém sabe. O nosso objectivo é que Angola seja
um Estado democrático em que a dignidade humana esteja acima de todos os
interesses. Quanto tempo levará para podermos construir essa Angola
democrática, não sei. Ainda há o medo generalizado, e é um medo que foi
construído, e muito bem construído. Mas acho também que não há pessoa nem povo
nenhum com capacidade de sofrer eternamente. Chegará um momento em que as
pessoas hão-de posicionar-se.
Como assim?
Talvez o povo devesse
fazer o que fez na época colonial e ir libertar os seus presos. Seria bom isso
acontecer no caso do Dago Nivel, porque também mostraria a vontade do povo em
posicionar-se do lado certo da História.
Quem é Dago Nivel?
Dago Nivel é um companheiro
nosso de luta, ele partilha também a necessidade de uma Angola democrática. Ele
participava nos debates que nos levaram à prisão. E no dia da nossa condenação,
ele gritou bem alto e a bom som: “Este julgamento é uma palhaçada. Os palhaços
estão identificados.” Foi condenado a oito meses de prisão. E na prisão
continua.
*Com Público
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