“NA UNIÃO A ALEMANHA MANDA E OS OUTROS OBEDECEM”
É tímida?
As pessoas consideram-me. Não me sinto muito confortável em situações de
exposição e tendo a gostar de estar sossegada no meu canto.
Mas é coordenadora do
Bloco…
Faz-se o que se tem a fazer. Quando Rui Rio estava a demolir o bairro
São João de Deus, vivia-se lá em condições terríveis, havia uma parede a dizer:
bem-vindo ao Tarrafal. Entrar no bairro era muito complicado. Trabalhei lá com
famílias e crianças. Não houve um dia em que lá entrasse e não me parasse a
digestão. Não deixei nenhum dia de lá entrar. Não temos de fazer as coisas que
nos são confortáveis, mas as que têm sentido.
Não temos de fazer as coisas que nos são confortáveis, mas as que têm
sentido.
Conseguiu levar o BE a um
patamar onde nunca tinha estado. O trabalho do partido é agora mais intenso?
Não sei se é mais intenso. Mas é diferente negociar orçamentos do Estado
ou fazer propostas para o orçamento. Há uma dificuldade acrescida. Diria que o
BE consegue ter o pior de dois mundos, caricaturando: nem estamos
confortavelmente na oposição, nem temos a relação de forças para fazer o que
gostaríamos. Todos os dias são uma luta para ver o que é que é possível
conseguir com a relação de forças que temos. Agora, sendo isso altamente
complicado, há dias em que é mesmo ingrato, estou segura de que é muito melhor
do que estar confortavelmente na oposição sem ser capaz de alterar.
Tendo em conta, por
exemplo, as polémicas viagens pagas pela Galp, não houve nenhum momento – e o
BE foi até onde conseguiu ir nas negociações do orçamento e em propostas que
levou ao Parlamento –, em que se arrependesse da criação da geringonça?
Todos os dias me arrependo. Faz parte.
O que quer dizer com isso?
Todos os dias somos confrontados com as limitações. Agora, naturalmente,
enquanto os objectivos que estiverem a ser traçados forem cumpridos, cá estamos.
Com as dificuldades de todos os dias.
O objectivo era tirar a direita do governo
Quer explicar melhor? Quando
a pergunta é, se, tendo em conta as limitações nas negociações orçamentais,
escândalos como os da Galp, alguma vez se arrependeu da gerigonça e responde
todos os dias…
Todos os dias sou confrontada com os limites da geringonça. Isso custa.
O que não é mau, é o que temos de fazer. Há dois objectivos essenciais no
acordo que o BE fez, mas fizemo-lo e lutámos por ele: travar o empobrecimento
do país e afastar a direita do governo.
Tem medo de não conseguir
ir mais além?
Todos os dias tenho medo de não conseguir. Todos os dias tenho de lutar
para que seja possível. Não é mau.
Todos os dias se
arrepende, tem medo e luta contra as limitações?
Sim.
Depois do Verão vamos ter
dois temas: a decisão sobre se Portugal poderá ou não sofrer cortes nos fundos
europeus e o Orçamento do Estado de 2017. O BE está preocupado?
Estamos muito preocupados com a pressão europeia.
Acredita que vai haver
cortes?
A nossa função não é adivinhar. É termos acções para que aconteça
determinada coisa. A União Europeia não é uma lei da gravidade, as coisas não
acontecem porque tem de ser assim. Temos de fazer com que aconteça. Há uns
meses, dir-se-ia que processo das sanções nunca seria aberto. Nunca tinha sido.
O que está em causa não é se achamos ou não que nos vão tirar os fundos. É se
sabemos se há forças na União Europeia que querem sancionar. O que querem dizer
é que só pode haver uma política única na União Europeia, a da austeridade.
Querem fazer a Portugal e Espanha para, no futuro, chegarem a economias como
França e Itália, e terem a certeza de que têm os mecanismos de pressão para que
a austeridade seja política única. Essas forças existem, temos fazer a força
contrária. Foi muito importante a reacção que existiu das forças políticas em
Portugal e não só. Embora a direita, a partir de certa altura, fez uma leitura
política errada. Passou a dizer-se ‘se as sanções vierem, a culpa é do actual
Governo que não merece confiança e tal’. Ainda assim, houve uma coesão e o Governo,
desse ponto de vista, esteve bem. É preciso ser bastante claro em não aceitar
que haja cortes nos fundos estruturais. Se ficarmos a achar ‘agora já está,
agora não vai haver cortes nos fundos estruturais’, pois eles virão. É uma
irresponsabilidade. É preciso ser intransigentemente contra o corte em fundos
estruturais. O BE, enquanto partido com o peso que tem, e também no actual
equilíbrio de forças, fará clara a sua voz. Sabemos que isto é uma chantagem
que tende a arrastar-se, para condicionar políticas e contornar orçamentos do
Estado. Precisamos é de preparar o orçamento. O Governo tem de preparar o
orçamento e o BE está disponível para negociar, para que não seja um orçamento
que recua, porque há chantagem, mas queira recuperação da economia em Portugal,
de rendimentos, que promova esse caminho diverso da austeridade.
Toda a chantagem está a ser feita para
condicionar o orçamento
Teme um combate difícil
por causa do próximo orçamento?
Toda a chantagem está a ser feita para condicionar o orçamento. A
política da União Europeia mantém-se, quer manter processos de privatizações,
baixar custos de trabalho. A pressão é toda para voltarmos ao contrário. O
combate europeu que aí vem é muito importante. Existe, numa determinada elite
portuguesa, a ideia de que Portugal não é um país viável. Que é um país pequeno
demais, face à globalização, que fizemos tudo mal até agora, que já não há nada
a fazer, não há indústria, não há agricultura, não há nada, que somos uns
dependentes do exterior, e tudo o que podemos fazer é tentar negociar umas
condições menos más sobre a nossa dependência. Boa parte da forma como estamos
na Europa e do confronto europeu tem a ver com esta ideia. Uma ideia que não
corresponde à realidade. O país tem enormes problemas e foram feitas escolhas
desastrosas, que levaram à desindustrialização em determinados sectores,
abandono de capacidade produtiva. Mas é um país em que, ainda assim, a
qualificação cresceu muito. Tem de crescer mais, tem de se fazer mais. A ideia
de dependência do nosso Estado não tem a ver com a capacidade produtiva do
país, nem com os salários das pessoas, nem o peso do Estado Social, mas só com
o sistema financeiro. O facto de a integração europeia ter sido toda feita, nos
últimos anos, em torno de retirar aos países capacidade de decisão sobre o seu
próprio sistema financeiro é o maior risco para o nosso país. Aí, sim, podemos
perder capacidade. Vai ser determinante, nos próximos tempos, a nossa
capacidade de reagir à completa retirada da capacidade do Estado intervir no
sistema financeiro. O nosso país não é inviável, é um país onde é preciso fazer
muitas coisas, mas temos como fazer. O maior risco é perdermos todo o controlo
sobre o sistema financeiro, porque aí a democracia passa a ser uma fantochada,
deixamos de ter capacidade de decidir sobre o que quer que seja.
O sistema financeiro está a ficar com os recursos do país. Isso é
intolerável. Precisamos de recursos para ter emprego, investimento, Estado
Social. Precisamos dessa reestruturação da dívida.
Quais as expectativas em
relação ao PS?
Que faça o que fez até agora. Temos divergências. Achamos que o Governo,
nesta altura, devia estar a preparar-se para reestruturar a dívida portuguesa.
É essencial. Não há ninguém que não assuma que é preciso reestruturar a dívida.
É um processo que devia ser aberto e Portugal não devia ficar sempre à espera.
Ficamos à espera de quê? Que a Goldman Sachs mande um bocadinho mais? Não vamos
nunca reestruturar a dívida? Neste momento, a dívida pública sangra os recursos
do país. O sistema financeiro está a ficar com os recursos do país. Isso é intolerável.
Precisamos de recursos para ter emprego, investimento, Estado Social.
Precisamos dessa reestruturação da dívida. O Governo não concorda connosco. O
Governo acha que deve continuar à espera da Europa. Achamos um erro. Mas,
enquanto for possível negociar orçamentos de Estado, enquanto o PS mantiver a
sua parte de continuarmos a recuperação de rendimentos do trabalho em Portugal,
o BE também está aqui para dar esse apoio parlamentar que foi acordado. O BE
estará sempre disponível para negociar medidas necessárias para recuperar
rendimentos. Julgo que o PS está interessado no mesmo. Não acho que esteja
interessado em fazer a política da troika. Tendo nós as diferenças que são
conhecidas, óbvias, não sinto que o PS queira fazer uma coisa diferente daquela
que está a fazer. Julgo que no PS pensarão todos os dias, como eu, todos os
dias me arrependo (risos) e todos os dias luto para que isto seja possível,
porque tem de ser.
Na Convenção do BE, agitou
a palavra referendo, que deu muito que falar.
Ainda bem.
Na UE, aos portugueses tudo é imposto
Quer explicar melhor?
Os portugueses nunca foram chamados a pronunciar-se sobre a construção
da União Europeia, a chamada construção europeia. Tenho problemas com o termo
construção europeia, parece que a única forma de os países na Europa se
organizarem é através da União Europeia e do directório que existe hoje e que
manda na Europa. A Europa é algo muito mais interessante do que a União
Europeia. Há sempre possibilidades de os partidos se organizarem, se
coordenarem, cooperarem. Uma forma diferente desta em que a Alemanha manda e os
outros obedecem. Precisamos de a inventar. De uma outra construção europeia bem
diferente desta, mais interessante do que a União Europeia que tem mostrado a
sua falência a todo o nível. Não foi capaz de tratar o sistema financeiro.
Transformou o problema financeiro num problema dos Estados, de dívida pública.
Não é capaz de responder aos problemas da economia na zona euro, 50% dos jovens
estão desempregados, aos problemas internacionais. Erguem-se muros quando os
refugiados chegam à Europa. A União Europeia está em colapso. Não devemos achar
que a construção europeia é a União Europeia, se não estamos a dizer que é
impossível outra Europa. Mas até hoje, os portugueses nunca foram chamados a
pronunciarem-se sobre nada. Zero. Noutros países houve referendos. Os
portugueses não foram chamados a pronunciar-se. Foi sempre tudo imposto. Como
se tivesse de ser assim. Neste momento o que pode ser referendado é o Tratado
Orçamental, porque é um tratado intergovernamental, que durante o próximo ano
terá de ser transformado em Tratado Europeu. Dizemos que, nesse momento,
Portugal não deve aceitar esse passo. Se esse passo for dado pela Europa, deve
perguntar às pessoas se o querem dar. Se querem que o tratado da austeridade
seja europeu. Deve ser perguntado. Idealmente, o Tratado Orçamental devia ir
para o caixote do lixo das más ideias, em vez de se tentar transformar em
tratado europeu.
BE e o Syriza hoje têm relações mais distantes
Como é a relação do BE com
o Syriza agora? O Syriza foi assobiado na Convenção do Bloco.
Não acho muito bonito. Foi nosso convidado, não devia ser assobiado. A
UGT também foi assobiada, também não acho de bom-tom. Não convidamos só pessoas
com quem concordamos a 100%.
O Syriza foi um partido
muito próximo do BE.
Sim. O que aconteceu foi que o Governo grego capitulou face à pressão
europeia. Devemos ser claros sobre a nossa discordância com o que se está a
passar na Grécia, e o plano de austeridade imposto. Mas não devemos ser
arrogantes. Aprendemos muito com o que aconteceu na Grécia. Aprendemos que um Governo
que quer proteger o seu povo tem de estar preparado para o confronto europeu,
como o Syriza não se preparou. Acreditou nas regras europeias, que podia fazer
um confronto dentro dessas regras. Depois percebeu que, na Europa, as regras só
servem quando são desculpa para sancionar quem não quer austeridade. Mas,
quando é para impor austeridade, não interessam as regras, a Europa faz de
qualquer maneira. O que interessa é o directório alemão. Foi uma aprendizagem
muito dura para toda a esquerda que achou que, confiando nas regras europeias,
poderia ter ali algum espaço de disputa de alternativa. Hoje temos de saber que
não podemos confiar nas regras europeias. Naturalmente, o BE e o Syriza hoje
têm relações mais distantes, não subscrevemos as opções que estão a ser feitas,
mas devemos continuar a conversar. Seria um erro não o fazermos. Seria mesmo
arrogante. É por isso que o Syriza continua a ser convidado para a Convenção do
BE, mesmo com as diferenças sobre o que se está a passar.
0 comentários: