“TODOS OS DIAS ME ARREPENDO DA GERINGONÇA”
Catarina Martins |
Entrevista a Catarina
Martins. A coordenadora do Bloco de Esquerda, partido português que mais se
bateu pela defesa dos 17 activistas angolanos, presos por alegada preparação de
rebelião, disse que tem medo de, no actual modelo de governação, não ir mais
longe. Mas luta sempre contra essas limitações. No entanto, por ser uma
entrevista longa e suculenta, o disputaspoliticas decidiu dividir o texto em
duas partes.
Por Maria João Lopes
(Texto)
Fonte: Público
Aprendeu piano, mas toca mal. Gosta de música clássica, as big bands
põem-na bem-disposta. Cresceu a ouvir música popular brasileira e de
intervenção. Tem pouco tempo para hobbies, mas gosta de nadar e de ler
policiais. É fã dos Monty Python, uma “devoradora” de comédia: “A capacidade de
nos rirmos de nós próprios, de desmontarmos todas as situações é inerente à
nossa saúde mental”. Em criança, viajava com os pais e o irmão, acampavam em
Portugal, iam num Renault 5 pela Europa. Também gostava de passar o dia na
praia em Miramar com a melhor amiga. Aos 42 anos, ainda quer fazer um périplo
pelo Norte da Europa.
Nasceu no Porto, mas não
viveu sempre no Porto?
Os meus pais eram professores, saltitavam. Quando nasci, o meu pai
estava na tropa e a minha mãe a dar aulas no Porto. Vivi algum tempo em Santa
Maria da Feira com os meus avós e a minha mãe, era muito bebé. Depois vivi em
Vila Nova de Gaia, Santo Tirso, Santo André, perto de Vagos, Aveiro, São Tomé,
São Vicente e Santiago, em Cabo Verde, e voltei a Aveiro, onde fiz a escola. A
seguir, fui para Coimbra estudar. Estive dois anos em Direito, depois fundei
uma companhia de teatro no Porto [Visões Úteis].
Qual é a sua primeira
memória política?
Lembro-me de estarmos a apanhar o avião para São Tomé, em Lisboa, e de
haver muitas manifestações contra Sá Carneiro. ‘A luta continua, Sá Carneiro
para a rua’. Estava em São Tomé quando Sá Carneiro morreu. Não me lembro da
comoção que as pessoas se lembram, mas de a minha mãe dizer para não repetir
aquela frase, porque o senhor tinha morrido. E lembro-me de, quando tinha três
anos, viverem em nossa casa um galego e uma galega, fugidos do franquismo.
Como chegou à política?
Nunca tive actividade partidária até entrar no BE, mas tive sempre
actividade política. De organização estudantil, no secundário, no superior. Já
a trabalhar, actividade política relacionada com as questões da precariedade,
da política cultural. Fui-me sempre organizando em associações, em movimentos.
Na companhia de teatro, uma parte da nossa actividade tinha a ver com uma
reflexão política sobre o nosso tempo. Fizemos trabalhos sobre a cidade,
trabalho com populações que estão normalmente distantes da linguagem artística.
Trabalhámos em aldeias do interior, em escolas em que só havia seis crianças,
em estabelecimentos prisionais, com bairros sociais do Porto.
O Bloco de Esquerda ignorou-me
Depois chega ao BE.
Posso não ter tido vida partidária durante muito tempo, mas votava, o
meu campo ideológico é este. Socialista, feminista, ecologista.
Começou por ser eleita
como independente.
Comecei a militar no Bloco já era deputada. O que aconteceu foi que há
um espaço ideológico que é o meu e houve uma série de lutas em que o partido
presente era o BE. Nas questões da interrupção voluntária da gravidez, nas
grandes manifestações contra a guerra, nas questões dos trabalhadores
precários, de começar a usar a palavra precários. Depois houve uma proximidade
clara com a organização do Bloco no Porto, no momento em que Teixeira Lopes foi
eleito como deputado. Foi muito próximo de quem estava nos movimentos do distrito,
da cidade. Na altura, com Rui Rio muito agressivo contra a cultura. Dirigi
colectivos com pessoas de vários partidos e participei, a convite de vários
partidos, em sessões públicas, na escrita de programas. Fiz isso com todos os
partidos que pediram, mas havia um com que tinha uma afinidade clara e com quem
trabalhei mais. Em 2009, fui convidada para ajudar a pensar uma candidatura
autárquica para o Porto, que se posicionasse no oposto de Rui Rio, fiz isso com
Teixeira Lopes. Depois fui convidada para escrever parte do programa de cultura
do Bloco às legislativas e para fazer alguns debates. Só depois de ter feito
esse percurso é que o BE me convidou para ser candidata. Fui eleita e, a partir
de determinada altura, senti a necessidade de estar nos debates internos do
partido. Achei que tinha sentido aderir ao Bloco. É preciso dizer que, há
muitos anos, tentei aderir ao Bloco, perderam a minha ficha de inscrição, se
não estou em erro. Ignoraram-me estoicamente. (risos)
Como era a Catarina
Martins adolescente? Contestatária?
Cresci num meio em que todas as pessoas se organizavam. Os meus pais
fizeram parte de partidos políticos, deixaram de fazer, de sindicatos, de
associações culturais, de cooperativas de habitação…
Fizeram parte do BE.
Quando entrei, já eles tinham saído (risos). Cresci num ambiente
familiar, não só os meus pais, mas a minha família, os amigos com quem me dava,
em que o normal era as pessoas organizarem-se, em associações, cooperativas.
Para mim, sempre foi natural organizar-me com as pessoas com quem estava. E
sempre tive uma educação, um ambiente, que me permitiu crescer com uma
sensibilidade grande para a injustiça.
Sempre tive uma educação, um ambiente, que me permitiu crescer com uma
sensibilidade grande para a injustiça.
Os seus pais eram
professores de quê?
Matemática.
Minha mãe morreu quando eu tinha 13 anos
Não seguiu o mesmo
caminho…
Não fazia a mínima ideia do que havia de seguir. Quis ser jornalista,
repórter de guerra, professora. A determinada altura, quis fazer teatro. A
primeira vez que fiz alguma coisa de teatro tinha 13 anos. Um grupo de Aveiro
foi à escola anunciar que havia um workshop para fazermos teatro de fantoches.
Até hoje acho que há uma divisão cedo de mais entre letras e ciências. Não
sabia minimamente o que havia de fazer no fim do 9.º ano. Fiz o 9.º ano em
quimicotecnia e acabei por ir para letras por reacção às turmas de Ciências.
Eram turmas com uma ideia de um determinado elitismo, de pessoas que queriam ir
para Medicina, com uma competição em que não me enquadrava. Sentia-me mais
confortável com as pessoas que gostavam de Letras, mas era melhor aluna a
ciências. Não fui para o mais fácil, mas onde me sentia mais enquadrada. Depois
fui estudar Direito um pouco por falta de opções, não sabia muito bem o que
havia de ser e tinha uma ideia romântica do Direito. O meu avô foi advogado. No
tempo do fascismo era uma coisa especial.
Chegou a vê-la entrar para
Direito?
Não. Morreu quando eu tinha 13 anos.
O seu avô também se
situava à esquerda?
Era tudo à esquerda. O irmão do meu avô foi morto pela PIDE, era
comunista na clandestinidade.
Quando foi para Direito,
já gostava de teatro?
Sim, mas na altura não havia muitas opções. Hoje há. Não digo que esteja
bem, tem muitos problemas, mas o ensino artístico avançou muito. As pessoas
podem decidir estudar teatro, cinema e terem uma oferta escolar sólida…
Não têm é saídas…
Sim, mas na altura também não havia. Quando decidi estudar Direito, não
era muito fácil estudar teatro. Havia o Conservatório em Lisboa. E eu tinha uma
ideia, eventualmente adolescente, de que o Conservatório era muito conservador,
também é injusto para o Conservatório. O teatro universitário era uma grande
escola. Fui para Coimbra estudar Direito com essa ideia romântica de Direito e
também para ir para o teatro universitário. Fui para o CITAC. Queria era
teatro. Portanto, comecei a trabalhar muito cedo, fui para o Porto.
Licenciei-me no Porto, em Línguas e Literaturas, na Universidade Aberta. Acabei
o curso como conseguia, a trabalhar ao mesmo tempo. E fiz o mestrado em
Linguística na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Deixou o teatro em 2009,
quando foi eleita pela primeira vez deputada, mas já disse que é actriz ainda
que se sente. Faz-lhe falta o teatro?
A determinada altura, fui-me dedicando cada vez mais à escrita, à
direcção de projectos artísticos e à encenação do que a ser actriz. E sinto
falta, faz muito parte de mim, acho que tenderei a voltar a isso.
Já disse que teria
desgosto se as suas filhas vierem a ser de direita. Não é um pensamento pouco
democrático?
As minhas filhas, com 10 e 14 anos, serão o que quiserem. Os pais têm de
ensinar os filhos para a liberdade com tudo o que isso significa. Capacidade de
ter autonomia, responsabilidade. É certo que a maneira como olho para o mundo
faz com que ache que as ideias de justiça, solidariedade, fraternidade, casam
com ser de esquerda, com não nos conformarmos com a desigualdade, com a
injustiça. A direita parte de uma certa conformação, como se fosse um estado
natural a desigualdade. Gostava que elas não se resignassem nunca à
desigualdade. Mas serão o que quiserem ser.
… O ódio acontece quando a NATO bombardeia
Que papel no palco nunca
vai esquecer?
Não pelo papel, mas por aquilo que significou o processo. Fizemos um
espectáculo em 2001 chamado Orla do Bosque. Tínhamos feito uma série de
trabalho, com intelectuais da Europa, em que discutimos o que era a Europa, se
era possível uma Europa comum ou não, qual era a noção de fronteira. Havia um
certo optimismo numa construção europeia que estava a ser feita de uma forma
não democrática, e esse optimismo da política era contrariado pelo discurso
intelectual, que era muito minoritário na altura, mas que para nós era
importante, no qual nos revíamos. Um discurso também sobre a forma como a
Europa se fechava numa fortaleza aos outros povos. Havia essa Europa fantástica
que estava a ser prometida para alguns, deixando outros para trás. Era quase um
sacrilégio ter um discurso negativo sobre o que estava a acontecer. Havia uma
passagem do texto que tinha a ver com o optimismo desenfreado acerca de um modo
de vida feito sobre os escombros das pessoas que se estão a sentir excluídas. A
construção em cima da exclusão dos outros. E havia um presidente de um conselho
de administração de uma qualquer multinacional de Wall Street que olhava a
cidade do seu escritório, no último andar de um arranha-céus, e que nunca
imaginará as ruínas em que o seu edifício se tornará. Da mesma forma que o
imperador romano não imaginava as ruínas do Coliseu. Estava a ensaiar esta
parte do texto quando foi o 11 de Setembro. Estava a acontecer aquilo e nós
dizíamos: nada será igual. Isto é uma outra guerra. Em boa parte, tínhamos
infelizmente razão.
Nas questões
internacionais, o que a preocupa mais: as eleições norte-americanas, a Europa,
a crise dos refugiados, o que se passa na Turquia…
O problema é a política do ódio. Está a crescer. É o mais perigoso de
tudo. A política do ódio acontece quando a NATO bombardeia, quando Donald Trump
faz uma campanha a hostilizar uma parte do mundo, quando a União Europeia trata
parte do seu povo como se estivesse sob suspeita permanente ou é incapaz de
cumprir o mais básico do Direito Internacional, ao acolher quem foge da guerra.
Povos que já acolheram europeus que fugiam da guerra. A política do ódio é o
factor que une estes vários acontecimentos, é o mais preocupante neste momento
na política internacional.
Obs: Segunda parte do
texto será publicada há sete horas
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